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O corpo rousseauniano

O corpo é assunto recorrente nos escritos de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), destacadamente no Emílio ou Da Educação, o tratado político-pedagógico em forma de romance que narra como foram os primeiros vinte e cinco anos da vida de um rico órfão adotado por um preceptor capacitado ao ensino da moralidade negativa, ou seja, da formação ética de um homem "exposto a todos os acidentes da vida humana" (1969, v. 4, p. 252). Com efeito, a obra se destaca pelo esforço do mestre em promover uma educação que evita formar em seu discípulo uma moral positiva, isto é, própria de determinada instituição particular, seja profissional, religiosa ou estatal. A premissa básica dessa ideia de educação negativa é a de que as qualidades humanas são basicamente virtudes, enquanto os caracteres específicos exigidos por esta ou aquela instituição social são, basicamente, vícios que deformam a condição humana. Um dos focos de atenção dessa pedagogia consiste em evitar as deformações que as instituições sociais operam sobre o que poderíamos chamar de corpo humano bem ordenado enquanto constituição física moldada pela natureza. Desse modo, o modelo de corpo a ser preservado no Emílio é o do homem natural, cuja descrição aparece no Discurso sobre a desigualdade, no passo que trata da conjectura do corpo belo e saudável do primitivo habitante do estado de natureza. Então, na cultura corporal do Emílio, é preciso atentar para a preservação, tanto quanto possível, (1) do corpo belo, para que ele não se torne monstruoso pela ação dos temporais da moral social — v. alegoria da Estátua de Glauco, de Platão[1] —; (2) do corpo saudável, para que ele não se desnature na tempestade do progresso — v. alegoria do Angelus Novus, de Walter Benjamin[2] —, pois, na perspectiva da razão rousseauísta, a história da espécie humana, tal como a conhecemos, foi responsável por produzir, entre os homens,

[...] a extrema desigualdade na maneira de viver [3]; o excesso de ociosidade de uns; o excesso de trabalho de outros [4]; a facilidade de irritar e de satisfazer nossos apetites e nossa sensualidade; os alimentos muito rebuscados dos ricos, que os nutrem com sucos abrasadores e que determinam tantas indigestões; a má alimentação dos pobres, que frequentemente lhe falta e cuja carência faz que sobrecarreguem, quando possível, avidamente seu estômago; as vigílias, os excessos de toda sorte; os transportes imoderados de todas as paixões; as fadigas e o esgotamento do espírito, as tristezas, os trabalhos sem-número pelos quais se passa em todos os estados e pelos quais as almas são perpetuamente corroídas [...] (ROUSSEAU, 1964a, v. 3, p. 138).

No tratado Da Educação, tais males corruptores nunca são perdidos de vista pelo preceptor em suas justificadas medidas (1) de aconselhar as amas de leite a não impedir os movimentos da criança, a não aprisioná-la em bandagens e cueiros (1969, v. 4, p. 253); (2) de prescrever uma alimentação rica, variada e basicamente vegetariana (p. 276); (3) de evitar arrebanhamentos humanos e o ar das cidades (p. 277); (4) de estimular o exercício contínuo do corpo (p. 359); (5) de ensinar ao jovem aprendiz o ofício da marcenaria (p. 477); (6) de levar o rapaz a fazer caminhadas pelos campos (p. 781); (7) de incentivar o homem a viajar para conhecer os diversos países da terra (p. 828);... Medidas atreladas à crença de que "o corpo nasce, por assim dizer, antes da alma" (p. 704).

Nota(s):
[1] Nós vimo-la seguramente num estado comparável ao de Glauco marinho. Quem o vir, não reconhecerá facilmente a sua natureza primitiva, devido ao facto de, das partes antigas do seu corpo, umas se terem quebrado, outras estarem gastas, e todas deterioradas pelas ondas, ao passo que outras se sobrepuseram nela — conchas, algas ou seixos —, de tal modo que se assemelha mais a qualquer animal do que ao seu antigo aspecto natural. É assim também que nós vemos a alma, abatida por milhentos vícios (PLATÃO, X, 611 d, 2001, p. 480).
[2] Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso (BENJAMIN, 1987, p. 226).
[3] Para remediar esse mal, o autor prescreve que a sociedade do Contrato Social seja estruturada de tal modo "que nenhum cidadão seja suficientemente opulento para poder comprar um outro e não haja nenhum tão pobre que se veja constrangido a vender-se" (ROUSSEAU, 1964b, v. 3, p. 391) e observa que o corpo político, na medida em que extrai sua vitalidade da circulação da liberdade pública, adoece quando o opulento e o mendigo obstruem tal circulação através do tráfico que mantêm entre si.
[4] Rousseau preceitua que os corpos humanos e políticos sejam remediados do mal da desigualdade entre o labor e a indolência através de uma aproximação entre o campo e a cidade, a fim de que a dureza laboriosa do trabalho campesino e a flacidez luxuosa da indolência citadina deixem de se sustentarem mutuamente. O objetivo ético dessa medida é que o trabalho e o ócio se afastem das suas positividades viciosas — determinantes dos excessos e das faltas em matéria de alimentação, exercícios físicos, sensualidade, apetite, sono, emoções, etc. — e se encontrem no ponto áureo da virtude.

Referência(s):
BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas: Magia e Técnica, Arte e Política. Tradução Sergio Paulo Rouanet. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987.
COSTA, Israel Alexandria. O corpo rousseauniano: material de aula. Arapiraca, AL: Grupo de Pesquisa Gnosiologia, Ética e Informação / CNPq / Ufal - Projeto Web Filosofia, 2021. Disponível em: https://www.gpgeinfo.org/p/rsscrp.html. Acesso em: 18 abr. 2021.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discours sur l'origine et les fondemens de l'inégalité parmi les hommes . Paris: Gallimard, 1964a. 5 v., v. 3, p. 131-223.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens. [s. l.]: CultVox, 2001. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv000053.pdf. Acesso em: 18 abr. 2021.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. Tradução Rolando Roque da Silva. [s. l.]: CultVox; Ridendo Castigat Mores, 2002. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv00014a.pdf. Acesso em: 18 abr. 2021.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Du Contrat Social ou Principes du Droit Politique. Paris: Gallimard, v. 3, 1964b. p. 351-470.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Émile ou de l'Éducation. Paris: Gallimard, 1969. 5 v., v. 4, p. 241-868.
PLATÃO. A República. Tradução Maria Helena da Rocha Pereira. 9. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.

Atividade(s):
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