No Discurso sobre as ciências e as artes, Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) fixa uma importante diferença entre a ciência enquanto prática a que se entregam alguns raros indivíduos especiais e a ciência enquanto cultura de massa incentivada pelos governos. No primeiro caso, a ciência seria louvável na medida em que ela permitiria a expressão da genialidade do indivíduo que se sente com forças para caminhar só. No segundo caso, paira sobre a ciência a suspeita de que ela possa servir como meio de fortalecimento do poder despótico, pois enquanto o povo está às voltas com o trabalho técnico-científico, ele pode não perceber que está sendo escravizado. É que um dos poderes da ciência seria o de estender "guirlandas de flores sobre as cadeias de ferro" (ROUSSEU, 1964, v. 3, p. 6), de colocar um véu sobre os perigos do prometeísmo[1].
O discurso rousseauniano prognostica o perigo dos governos que utilizam o sistema educacional para a produção massiva de excelentes técnicos completamente analfabetos em matéria de humanidades; engenheiros acríticos que sabem os nomes dos duzentos tipos de parafusos com que operam, mas não conseguem sequer dar nome ao que sentem, permanecendo, em assuntos que dizem respeito à ética, moral, religião, política, sexo e etnia entregues aos preconceitos com os quais os governantes exercem sua tutela.
Ulteriormente, a história confirmou o prognóstico crítico de Rousseau quanto aos perigos da racionalidade técnico-científica. Na obra de Kant, acerca do conceito de esclarecimento, lê-se que "em relação às artes e às ciências os nossos governantes não têm interesse algum em exercer a tutela sobre os seus súditos" (1988, p. 18); os filósofos da Escola de Frankfurt, para quem "a exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação" (ADORNO, 1995, p. 117), em sua denúncia contra os aspectos funestos do programa político-pedagógico da modernidade, apontam para o caso Auschwitz, dos operários tecnicamente eficientes e monstruosamente desumanos, como sendo o infeliz resultado da distrofia da razão instrumental desenvolvida às custas da atrofia da razão crítica.
Nota(s):
[1] O prometeísmo é o sistema no qual prevalecem as forças caóticas manifestadas em forma de técnicas. Os mitos gregos que relatam as fraudes mutuamente aplicadas entre Prometeu e Zeus destacam as manifestações técnicas das forças titânicas empenhadas em distorcer a ordem [moral, religiosa, estética, natural, etc] na qual a divindade exercia a sua soberania. Lafer (1996), em sua análise do mito de Prometeu, insinua que, para cada investida fraudulenta do Titã, há uma contra investida do Deus, de modo que tudo se passa como um duelo de duas subjetividades que trocam venenos disfarçados de presentes: 1º) Prometeu "presenteia" Zeus com a queima de ossos cobertos de gordura, em vez de carne; 2º) Zeus, irritado pelo "presente", interpõe um obstáculo entre o fogo celeste e o mundo dos ánthropoi [seres humanos], os protegidos de Prometeu; 3º) Prometeu rompe o obstáculo e retoma o fogo para os ánthropoi; 4º) Zeus "presenteia" os protegidos de Prometeu com um kalón kakón [belo mal], transformando os ánthropoi em ándres [homens] e gynikes [mulheres]. Em sua alusão ao mito prometeico, o sintoma evidenciado por Rousseau é a anestesia do XVIII francês para com o caráter desordeiro da técnica; insensibilidade esta que torna extremamente solitária a vida dos raros indivíduos sensíveis à presença das técnicas disruptivas da ordem natural e social. A crítica ao prometeísmo, à luz da filosofia de Rousseau, ilumina a obra de Cervantes porquanto esta ilustra como a insensibilidade generalizada em relação ao mal intrínseco às técnicas titânicas produziu o rótulo de "desvairado" sobre aquele que se encontrou no locus poético de uma luta contra moinhos gigantes que, como técnicas locais do capitalismo, destruíam, de fato, a ordem estética figurada na beleza da paisagem natural e a ordem moral assentada na liberdade camponesa de viver da moagem artesanal dos grãos.
ADORNO, Theodor Ludwig Wiesengrund. Educação e emancipação. Tradução Wolgang Leo Maar. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.
COSTA, Israel Alexandria. O humanismo rousseauniano. Arapiraca, AL: Grupo de Pesquisa Gnosiologia, Ética e Informação / CNPq / Ufal - Projeto Web Filosofia, 2021. Disponível em: https://www.gpgeinfo.org/p/rsscnc.html.
CERVANTES, Miguel de. D. Quixote de La Mancha. Tradução Francisco Lopes de Azevedo. [s. l.]: e-BooksBrasil, 2005. 2 v., v. 1. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/eb00008a.pdf. Acesso em: 3 jan. 2021.
KANT, Immanuel. Resposta à pergunta: Que é esclarecimento? Tradução Artur Mourão. Lisboa: Edições 70, 1988.
LAFER, Mary de Camargo Neves. Prometeu e Pandora. In: HESÍODO. Os trabalhos e os dias. Tradução Mary de Camargo Neves Lafer. 3. ed. São Paulo: Iluminuras, 1996. p. 59-76.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Sur les sciences et les arts. Paris: Gallimard, 1964. 5 v., v. 3.
Atividade(s):
1)
405/pl/fc_s07