Em Semiótica e Filosofia, Charles Sanders Peirce (1839-1914) faz a seguinte confissão: "sempre senti que minha filosofia brotasse de um contrito falibilismo" (1972, p. 47) e, com efeito, a falibilidade que qualifica o produto central do pragmaticismo[1] peirciano — a hipótese instável — opõe-se frontalmente à infalibilidade que qualifica o produto central da metafísica cartesiana, a verdade firme que Descartes julgara haver encontrado após seu estado de dúvida hiperbólica. Na perspectiva peirciana, a impossibilidade de chegar a tal verdade se deveria ao caso de ser impossível alcançar a sua condição prévia, que é o estado da dúvida hiperbólica caracterizada pela seguinte declaração: "vendo que podia fingir que não tinha nenhum corpo e que não havia nenhum mundo, nem lugar algum onde eu existisse [...]" (DESCARTES, 2001, p. 38). É que, para Peirce, não faz sentido duvidar da existência do próprio corpo, ou de que aqui está uma mão, como assinala Wittgenstein, quem declara, em certa altura do seu livro Da Certeza, que "quem tentasse duvidar de tudo, não iria tão longe como se duvidasse de qualquer coisa. O próprio jogo da dúvida pressupõe a certeza" (1990, §115, p. 47). Tal como em Wittgenstein, a filosofia de Peirce sugere que a máxima trajetória possível no caminho da pesquisa científica é a que vai do estado da descrença para o da crença em relação aos corpos com que se dão os afetos: um percurso bem menor e bem mais modesto do que aquele que pretende partir da dúvida sobre a própria existência de corpos. Assim, considerando que o método científico não poderia partir de uma premissa como a existência de um cogito incomensurável para deduzir certezas científicas, o raciocínio dedutivo deveria dar lugar ao abdutivo, de modo que fórmulas como tendo-se estabelecido a verdade de que "todo h é m" e "este s é h", logo "s é m" deveriam dar lugar a fórmulas do tipo tendo-se observado que a melhor explicação para "p tem sido q", logo é provável que "seja q a explicação desse p".
Nota(s):
[1] O termo pragmaticismo é rigoroso, pois Peirce recusa que a sua filosofia seja chamada de pragmatismo, porquanto esta expressão tornara-se demasiada especulativa. Um exemplo de raciocínio pragmaticista e que pode servir para compreender também os aspectos menos especulativos do pragmatismo encontra-se em Stakeout on Blue Mist Mountain [Acampamento na Montanha de Neblina Azul], o episódio 24 de uma série de comédia estadunidense de TV chamada Agente 86: no momento em que um estampido acidental aciona o cronômetro de uma bomba atômica plantada no bloco capitalista pelos vilões do bloco comunista, o mocinho, com um ar de enfado que contrasta com o de pânico dos demais, pede a gravata do colega como um médico pediria um bisturi em meio a uma cirurgia, pois desativara uma vez o mesmo mecanismo ao puxar a própria gravata que acidentalmente ficara presa nas engrenagens.
COSTA, Israel Alexandria. Da lógica falibilista da pesquisa científica. Arapiraca, AL: Grupo de Pesquisa Gnosiologia, Ética e Informação / CNPq / Ufal - Projeto Web Filosofia. Disponível em: https://www.gpgeinfo.org/p/prccnc.html. Acesso em: 2 jul. 2021.
DESCARTES, René. Discurso do Método. Tradução Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica e Filosofia. Tradução Octanny Silveira da Motta e Leonidas Hegenberg. São Paulo: Cultrix, 1972.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Da Certeza. Tradução Maria Elisa Costa. Lisboa: 70, 1990.
Atividade(s):
1)
405/pl/fc_s11