Para pensar a epistemologia platônica em sua articulação com a teoria do conhecimento, propomos colocar sob suspeita as interpretações que fazem do amor platônico uma espécie de romantismo ao modo do Werther de Goethe, em que o idealista é um sujeito afetado pela beleza do corpo feminino, perdidamente apaixonado por sua amada e crente na possibilidade de escapar do sofrimento através de um suicídio que o levaria do mundo real para o da fantasia romântica. Quando se pretende ligar o idealismo platônico à filosofia da ciência é imprescindível deixar um pouco de lado as muitas leituras nas quais a noção de amor platônico é pensada em termos de abraço sonhado entre duas metades humanoides, tal como sugerido por Aristófanes[1]. No presente caso, será preferível pensar o amor em termos de memória, tal como se dá com a cera que, ao servir como lacre de cartas, retém o vazio do baixo relevo do cubo que a invadiu quando lhe pressionaram o sinete. Com efeito, no Timeu, Platão fala de um Demiurgo que fabrica com cera a parte intelectual da alma humana e informa nelas as ideias através do processo da impressão de arquétipos. Assim, o amor platônico tem a ver com objetivos científicos, com a memória de um intelecto para o qual o conhecimento científico é um degrau importante a se chegar na escalada rumo à ideia do bem.
Na filosofia platônica, esse amor é inato ao intelecto humano e, se não for corrompido por más escolhas, pode guiar a alma para a saída do seu estágio de não-sabedoria em direção à sabedoria, pois o vazio do baixo relevo da ideia do bem que o intelecto humano traz consigo ao nascer pode ser preenchido, aos poucos, por uma escalada dialética de quatro estágios que começa nos ínferos da ignorância e da prisão em um corpo cavernoso.
Nessa dialética em que o intelecto humano esquecido de si começa por ser comparado a um prisioneiro acorrentado e imobilizado nas profundezas de uma caverna subterrânea[2], o primeiro estágio em direção à aletheia [não esquecimento] é a visão sensitiva das sombras projetadas no fundo da caverna, que equivale à sensação produzida junto às eíkones [imagens] e à eikasia [a via da imaginação]; experiência que, em comparação com a da contemplacão da realidade radical da ideia, é sonho e ilusão radical de uma vida em meio a simulacros. O segundo estágio é o da visão perceptiva dos objetos que dão origens às sombras do fundo da caverna; equivale ao momento da sensibilidade estética à beleza das zóa [coisas vivas e visíveis]; à formação da pistis [crença] e da doxa [opinião]. O terceiro é o da visão investigativa do fogo, da opinião armada da explicação produzida pelas luzes artificiais das ciências; é o momento da mathéma [matemática] e da dianoia [raciocínio dedutivo]; da chama que incendeia o coração de amor à caça da verdade. O quarto estágio é o da contemplação dos eîdos [ideias ou arquétipos] através da nóesis [intuição intelectual], em que as coisas são vistas sob a atmosfera da episteme [conhecimento verdadeiro, representado pela luz natural] que emana da ideia do καλός καi αγαθός [kalos kai agathos ou o belo e bom, representado pelo sol].
Nota(s):
[1] Aristófanes é o personagem cômico do diálogo O Banquete ou Do Amor, que narra o modo cruel como os esféricos filhos de Gaia que viviam em estado de livre associação de individualidades alegres passaram para o estado de multidão de particularidades desejantes.
[2] Trata-se do mito presente no Livro VII, 514-517b, da República, que narra as sucessivas visões de um prisioneiro, desde o momento em que ele se levanta da sua prisão no fundo escuro de uma caverna subterrânea até a saída em uma superfície iluminada pelo sol.
COSTA, Israel Alexandria. Da epistemologia platônica. Arapiraca, AL: Grupo de Pesquisa Gnosiologia, Ética e Informação / CNPq / Ufal - Projeto Web Filosofia, 2021. Disponível em: https://www.gpgeinfo.org/p/cstepstmlgpltnc.html. Acesso em: 4 jun. 2021.
GOETHE, Johann Wolfgang Von. Os sofrimentos do jovem Werther. Tradução Marcelo Backes. Porto Alegre: L&PM, 2004.
PLATÃO. A República. Tradução Maria Helena da Rocha Pereira. 9. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.
PLATÃO. O Banquete. Tradução José Cavalcante de Souza. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
PLATÃO. Teeteto. Tradução Adriana Manoela Nogueira e Marcelo Boeri. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010.
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: Filosofia pagã antiga. Tradução Ivo Storniolo. São Paulo: Paulus, 2003. 7 v., v. 1.
Atividade(s):
a)
405/pl/fc_s02