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O vitalismo nietzschiano

Friedrich Nietzsche (1844-1900), em Assim falou Zaratustra, escreve que "o temor que mais tem logrado no homem é o temor aos animais selvagens, incluso o animal que o homem oculta e receia em si, aquele a que Zaratustra chama 'a besta interior'. Este estranho temor, por fim requintado e espiritualizado, parece-me que hoje se chama ciência" (2002, 4, 3, p. 474). Considerando que esse Zaratustra é o porta-voz da ideias do próprio Nietzsche, podemos dizer que a perspectiva nietzscheana em torno da cultura da ciência moderna abriga a suspeita de que a disposição que conduz o homem em direção ao trabalho científico é menos o amor à verdade do que o medo da vitalidade presente na besta interior[1]. Para Nietzsche, o emblema dessa cultura seria Sócrates, na medida em que a disposição deste em se identificar com o discurso lógico-científico teria origem no horror à bestialidade pela qual Sócrates era considerado um homem muito feio. A manifestação da cientificidade moderna no humano se deveria, então, a um profundo e, talvez, inconsciente desejo de morte do corpo; a um sintoma de decadência corporal semelhante ao da fêmea do polvo em estado de gravidez moribunda. O cientista analítico seria um matador que destrói pelo método da dissecação e, assim fazendo, se insensibiliza, perde senso estético tal qual o técnico moderno de Heidegger, que dá as costas à vida poética do rio para explorar energia com usinas hidrelétricas, sacrificando, assim, o encantado fluxo musical da existência por um ritmo insensível de máquina sem vida.

Nota(s):
[1] A besta interior nietzschiana, que existe em paralelo com os modos civilizados de uma certa cultura da ciência, encontra um exemplo similar na figura do homem natural da conjectura rousseauniana do estado de natureza, porquanto tal figura serve de referencial comparativo à desnaturação do homem civil do XVIII francês; no conto Um relatório para uma academia, de Kafka, a besta é um macaco que relata como fugiu da sua condição de símio ao encontrar o caminho da palavra e da ciência acadêmica; no Dr. Jekyll and Mr. Hyde, de Stevenson, o nome da besta [Mr Hyde] alude à tentativa de um médico muito civilizado em ocultar [hide] a persona da sua barbárie interior; no The incredible Hulk, de Stan Lee, a besta aparece como criatura vigorosa que eclode da ira de um cientista de física nuclear. Não parece difícil encontrar outros exemplos em que a ciência moderna e a civilização, juntas, contribuem para evidenciar a contrapartida da bestialidade.

Referência(s):
COSTA, Israel Alexandria. O vitalismo nietzschiano. Arapiraca, AL: Grupo de Pesquisa Gnosiologia, Ética e Informação / CNPq / Ufal - Projeto Web Filosofia, 2021. Disponível em: https://www.gpgeinfo.org/p/ntzschcnc.html. Acesso em: 5 maio 2021.
HEIDEGGER, Martin. A questão da Técnica. In: HEIDEGGER, M. Ensaios e conferências. Tradução Emmanuel Carneiro Leão. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001. p. 11-38.
KAFKA, Franz. Um relatório para uma academia. In: POE, E. A. (Org.). Histórias Fantásticas. Tradução Modesto Carone. São Paulo: Ática, 2007. p. 101-112.
LEE, Stan. The incredible Hulk. Nova York: Marvel Comics, ca 1960.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A Gaia Ciência. Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Assim falava Zaratustra. Tradução José Mendes de Souza. [S. l]: eBooksBrasil, 2002.
STEVENSON, Robert Louis. O médico e o monstro. Tradução Rodrigo Lacerda. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992. Tradução de: Dr. Jekyll and Mr. Hyde.

Atividade(s):
1) 405/pl/fc_s08