Em René Descartes [Renatus Cartesius] (1596-1650), o corpo humano é, à primeira vista, um conceito mental. Contudo, não apenas um conceito, pois essa mente (res cogitans), que vê a si mesma como realidade substancial e indivisível, se recusa a deixar submergir o conceito de corpo na mera idealidade dos produtos mentais; protege o corpo da irrealidade conceitual, conferindo-lhe o estatuto de realidade substancial divisível (res extensa). E, para justificar a sua própria existência substancial, assim como a do corpo, essa mente pressupõe a existência de uma terceira substância: a res divina. Portanto, a chamada "díade substancialista", pela qual os manuais costumam enxovalhar o dualismo cartesiano é, na verdade, uma tríade que instaura vários problemas teológicos e antropológicos de ordem filosófica. Para ficar apenas com esses últimos, podemos exemplificar com o problema da identidade do eu (que sou!?, sou mente ou sou conjugação mente-corpo?); o da percepção [que será o tema da fenomenologia de Merleau-Ponty] (como distinguir, na percepção, realidade substancial e imaginação mental?); o da relação alma-corpo (como se dá, no homem enquanto conjugação de alma inextensa e corpo extenso, a relação entre o incomensurável e o comensurável?). Esse último problema se revela tanto mais difícil de responder quanto percebemos que, para Descartes, a dinâmica da alma independe, de certo modo, da dinâmica do corpo. Com efeito, no cartesianismo, o que anima o corpo humano de vida e de movimento não é a ânima enquanto psiquê pessoal ou sopro vital do espírito divino, como sugere a tradição cristianizada de Aristóteles, que concebe a dinâmica do corpo como originada de uma (in)formação material da alma pessoal e espiritual. A dinâmica do corpo humano, na perspectiva cartesiana, tem origem em energias físico-químicas, cujo exemplo emblemático é o corpo da sacrílega criatura do Dr. Frankenstein, cuja vida e movimento devem sua origem às energias galvânicas aplicadas na costura de peças de carnes mortas. Uma valiosa chave interpretativa da significação histórica de tal perspectiva, que desencanta o dinamismo corporal ao deslocá-lo do paradigma da ânima para o do autômato, encontra-se disponível em O Capital, na seguinte nota: "observamos incidentalmente que Descartes, ao definir os animais como simples máquinas, os vê com os olhos do período manufatureiro; na Idade Média, o animal era considerado o ajudante do homem" (MARX, 2001, p. 446).
Referência(s):COSTA, Israel Alexandria. O corpo cartesiano: material de aula. Arapiraca, AL: Grupo de Pesquisa Gnosiologia, Ética e Informação / CNPq / Ufal - Projeto Web Filosofia, 2021. Disponível em: https://www.gpgeinfo.org/p/dscrtscrp.html. Acesso em: 17 abr. 2021.
DESCARTES, René. Discurso do Método. Tradução J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979. p. 25-71.
DESCARTES, René. Meditações. Tradução J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979. p. 83-142.
MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política. Tradução Reginaldo Sant'Anna. 18. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
Exercício(s):
1)
405/pl/dsctrs_crp_mvmnt