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Do dedutivismo cartesiano

O subtítulo do Discurso do Método, a obra mais célebre de Renatus Cartesius [René Descartes] (1596-1650), declara a intenção do autor de "bem conduzir a própria razão e procurar a verdade nas ciências". Tal declaração torna o termo "racionalismo cartesiano" um tanto impróprio, pois a razão aparece aí como algo que não tem autonomia, como coisa que precisa ser bem conduzida sob a pena de enveredar por caminhos que não levam à verdade nas ciências. É de se perguntar, portanto, qual é essa instância que bem conduz a razão a procurar a verdade nas ciências. A resposta de Descartes pretende ser clara e evidente: o sujeito do método, a substância condutora da razão é o pensamento deducionista, que age como os geômetras, operando derivações lógico-matemáticas a partir de axiomas. Tal pensamento só precisa de um ponto de certeza fundamental para, a partir dele, traçar as linhas e os planos da ciência. Esse ponto de apoio, essa "verdade sólida" (Discurso do Método, IV) que Descartes julga haver encontrado, após seu estado/experimento de dúvida hiperbólica[1], é a certeza de ordem metafísica traduzida na fórmula eu penso, eu existo. Essa lhe teria servido de premissa maior ao raciocínio que, passando pela ideia de perfeição, pela prova ontológica da existência de Deus, chegou ao mundo e à produção de certezas de ordem física, as quais se revelaram a ele na medida em que sua razão se viu bem conduzida pelos seguintes passos metódicos:

O primeiro [passo] era o de jamais acolher alguma coisa como verdadeira que eu não conhecesse evidentemente como tal; isto é, de evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção, e de nada incluir em meus juízos que não se apresentasse tão clara e distintamente a meu espírito, que não tivesse nenhuma ocasião de pô-lo em dúvida. O segundo, o de dividir cada uma das dificuldades que eu examinasse em tantas parcelas quantas possíveis e quantas necessárias fossem para melhor resolvê-las. O terceiro, o de conduzir por ordem meus pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para subir, pouco a pouco, como por degraus, até o conhecimento dos mais compostos, e supondo mesmo uma ordem entre os que não se precedem naturalmente uns aos outros. E o último, o de fazer em toda parte enumerações tão completas e revisões tão gerais, que eu tivesse a certeza de nada omitir. (DESCARTES, 1979, p. 67).

Nota(s):
[1] No contexto do cartesianismo, chamamos de dúvida hiperbólica ao experimento da dúvida não-patológica, ou seja, da dúvida como ação e não como sofrimento ou paixão. Por isso, tal experimento permite ao duvidante visitar os ínferos das certezas quebradas sem passar pelos tormentos dos condenados pela dúvida. Com efeito, tudo se passa como se o duvidante hiperbólico fosse um Dante em visita a um inferno de almas penadas por dúvidas patológicas. No primeiro círculo, o das penas nascidas das rachaduras em certezas cristalinas relacionadas às memórias pessoais, vê-se o choro lamentoso da Rachel do filme Blade Runner, em sua dúvida patológica quanto à certeza de que suas memórias eram vivências, e não implantes; no segundo nível, os dos apenados pela quebra da certezas em relação às sensações corpóreas, vê-se o Neo, do filme Matrix, vomitando de nojo e de pavor ao descobrir que sua imaginada aparência, assim como o conjunto de suas sensações corporais, não passava de uma realidade simulada por modelagem digital; no terceiro nível, o das certezas quebradas em relação às percepções lógico-matemáticas, vê-se o pobre Smith, do filme 1984, transformado de homem em zumbi por meio da tortura aplicada por um malin génie [gênio maligno] chamado Big Brother. O quarto nível, o das certezas quebradas quanto à existência de si, é o único que, por assim dizer, perturba Descartes e, de lá, ele volta para não ver quebrada a sua acalentada certeza da existência de um sujeito chamado pensamento.

Referência(s):
COSTA, Israel Alexandria. Do dedutivismo cartesiano. Arapiraca, AL: Grupo de Pesquisa Gnosiologia, Ética e Informação / CNPq / Ufal - Projeto Web Filosofia, 2021. Disponível em: https://www.gpgeinfo.org/p/dscrtscnc.html. Acesso em: 24 mar. 2021.
DESCARTES, René. Discurso do Método: para bem conduzir a própria razão e procurar a verdade nas ciências. Tradução Jacob Guinsburg e Bento Prado Júnior. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
DESCARTES, René. Meditações. Tradução Jacob Guinsburg e Bento Prado Júnior. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979a.

Atividade(s):
a) 405/pl/fc_s05