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Os objetos temáticos da Filosofia do Corpo

O corpo é tema privilegiado da Filosofia, tanto quanto o tema do pensamento. Na longa tradição da pesquisa filosófica, a área de estudos em Filosofia do Corpo tem desenvolvido trabalhos robustos que, infelizmente, não são muito divulgados. Em uma de suas abordagens, a Filosofia do Corpo pode ser definida como uma busca da sabedoria através de uma leitura interpretativa do corpo, caso em que a pesquisa nessa área se volta ao estudo do corpo enquanto elemento fundamental dos grandes sistemas do pensamento.

Nessa linha investigativa, o corpo se torna uma importante chave de decifração dos escritos clássicos e dos ideários político-pedagógicos do Ocidente e, com efeito, textos acerca do corpo encontrados nas obras de Platão, Aristóteles, Agostinho, Spinoza, Hobbes, Pascal, Descartes, Rousseau, Maine de Biran, Nietzsche, Merleau-Ponty, Foucault — e de muitos outros que integram a tradição histórico-filosófica — abrem portas à compreensão de perspectivas autorais abrangentes e de ideologias historicamente relevantes. Por exemplo, a percepção platônica do corpo é uma abertura à compreensão de um autor que ancora seu pensamento em um realismo das ideias que se tornou politicamente importante no ascetismo religioso medieval; a definição aristotélica de corpo é uma chave ao entendimento de um hilemorfismo que tem orientado a mentalidade científica ocidental; a corporeidade, em Agostinho e Pascal, é um tópico de estudo elementar a quem pretende conhecer as bases teóricas da cristandade ocidental; a ética dos afetos, de Spinoza, seria impensável sem a noção de corpo; o estatuto ontológico do corpo, tal como o concebem Bacon, Hobbes e Descartes, é praticamente a noção fundante da moderna mentalidade tecnológica; as conjecturas de Rousseau em torno do modelo de corpo bem ordenado, a partir do qual o autor escreve o Emílio e o Contrato Social, são marcos revolucionários nos campos da educação e do direito político; a perspectiva do corpo, em Nietzsche, não apenas permite compreender o vitalismo trágico da filosofia do autor, como atesta a sua importância para o surgimento da hermenêutica contemporânea da corporeidade, em cuja esteira situam-se as noções de corpo próprio, corpo dócil e corpo sem órgãos, de Merleau-Ponty, Foucault e Artaud, respectivamente.

Essa miríade de concepções filosóficas de corpo se encontra estruturada em, pelo menos, três paradigmas: o platônico, o aristotélico e o nietzschiano. O corpo que Platão apresenta, ao supor os homens presos numa caverna, é um funesto enjaulamento decorrente do sombrio e estranho desejo da psiquê por se banquetear de terra, uma espécie de sombra viva. Tal paradigma é diverso do aristotélico, no qual o corpo humano é materialização de uma forma, de uma corporeidade lógica que, por assim dizer, se "renderiza" para abrigar análises biológicas, fisiológicas, etc. Ao lado desses dois paradigmas, está o de Nietzsche, para quem o corpo é um glorioso complexo vivo, nascido do engendramento de uma vontade cantante, uma espécie de música vivente capacitada aos mais diversos desentranhamentos.

Esses três paradigmas presidem os diversos momentos da história da filosofia. O platônico, por exemplo, paira sobre as concepções de corpo da filosofia da cristandade, centrada em um laço que associa corpo e miséria existencial, conforme se nota em Agostinho, em que tal associação se estabelece como identificação parcial entre o corpo e a corrupção pecaminosa: identidade em relação à qual o homem só encontra compensação na salvação divina. Blaise Pascal, por sua vez, identifica o corpo à pequenez e à fragilidade do caniço, uma miséria em relação à qual o homem só encontra compensação na grandeza do pensamento. Para Maine de Biran, a miséria do corpo humano reside em que ele é um objeto comum, entre os outros, embora se trate de uma miséria compensada pelo caráter mágico de todo objeto eivado de subjetividade. A redenção, o pensamento e a magia aparecem, aí, como compensações diversas de uma única condição: a miséria do corpo, justificando o diagnóstico nietzschiano de que o cristianismo é uma espécie de popularização do platonismo.

Geralmente aceita-se que, na filosofia moderna, a identidade entre corpo e miséria existencial dá lugar a uma outra na qual o corpo aparece como objeto de investigação do sujeito da ciência, uma espécie de informante que responde, por meio de sinais, as perguntas dirigidas pelo inquisidor. Nessa leitura, encaixa-se a investigação geométrica de Hobbes, para quem o espaço corporal pode ser matematicamente precisado e o corpo sinaliza para a existência da chamada realidade: algo que, por ser independente da mente, pode ser acolhido como verdade objetiva. Encaixa-se também a investigação médico-analítica de Descartes, em que a dinâmica corporal aparece como resultante de automatismos internos de fundo elétrico, em que o corpo sinaliza para a existência uma realidade substancial, algo que, além de ser independente da mente, tem dinâmica própria. Também a investigação humanista e genealógica de Rousseau, em que o corpo sinaliza para a existência da perfectibilidade e da desnaturação da constituição originária.

Esses paradigmas dariam lugar ao nietzschiano nas correntes filosóficas voltadas à hermenêutica do corpo, ou seja, ao fenômeno da motricidade na qual o próprio corpo se desentranha, sem a necessidade de um sujeito que o interpele. Estariam subsumidas a esse novo paradigma, pelo menos, três hermenêuticas: a de Merleau-Ponty, produzida à luz de uma fenomenologia em que o corpo próprio, pela motricidade intencional da visão, desentranha percepções ambíguas, isto é, nem subjetivas nem objetivas; a de Foucault, que, farejando os rastros da microfísica do poder, deixados pela história da economia política, descreve o corpo dócil como desentranhamento que a motricidade teleológica da disciplina opera nos corpos indóceis; a de Albert Camus, que, observando os efeitos da motricidade circular do trabalho improdutivo nos corpos sisíficos, julga ter visto surgir, de dentro das próprias entranhas desse corpo, algo que a história do pensamento existencialista jamais ignorará: a consciência do absurdo.

Referência(s):
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