O enfrentamento de uma das questões mais fundamentais da filosofia da ciência, a de saber se sabedoria e ciência são a mesma coisa, reclama, pelo menos, uma análise histórica da racionalidade científica. À primeira vista, é difícil separar a história da racionalidade científica da história ortodoxa da filosofia, cujo início teria se dado na Grécia arcaica, a partir do surgimento da teoria da arché, com Tales de Mileto. Sob tal prisma, parece impossível pensar a ciência sem filiá-la imediatamente à sabedoria, ou seja, sem associá-la ao filos pela sofia, que define a própria essência da filosofia. É mesmo convincente a leitura segundo a qual os desdobramentos pré-socráticos da teoria da arché, como o atomismo, o eleatismo, o pitagorismo, assim como as manifestações clássicas da paideia filosófica, a exemplo do conceitualismo socrático, do idealismo platônico e do hilemorfismo aristotélico, seriam momentos embrionários de um desenvolvimento pelo qual a ciência viria a se tornar, na era moderna, um tipo de conhecimento culturalmente erigido em guardião da verdade.
Contudo algo aconteceu nesse curso histórico que determinou a cisão entre ciência e filosofia e levou à criação, no século XVIII, de uma filosofia da ciência, quando, no Discurso sobre as ciências e as artes, Rousseau denuncia que as ciências instauraram um mal-estar sintomático de carência de sabedoria prática. Certamente Rousseau não está falando da ciência que, no início da sua história filosófica, coincidia com uma racionalidade comprometida com o conhecimento e com a sabedoria, mas de um outra ciência, comprometida com poder e técnica, teoricamente fundamentada no indutivismo baconiano e no dedutivismo cartesiano, coincidente com uma racionalidade que os frankfurtianos viriam a chamar de instrumental.
Dessas breves considerações retiram-se lições valiosas em torno da questão de saber se ciência e sabedoria são a mesma coisa: além de uma análise histórica, tal questão reclama também uma investigação sobre os significados das palavras envolvidas nesse enunciado que tenta expressá-la e, sobretudo, um exame em torno dos fundamentos daquilo que costumamos chamar de racionalidade científica.
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