Segundo Chalmers (1993, p. 200), "não existe um conceito universal e atemporal de ciência", embora se possa afirmar que ela esteja radicada na noção de conhecimento. Nesse sentido, ciência pode significar a) notícia, como no enunciado tivemos ciência de que houve uma nova epidemia na China; b) informações enciclopédicas, como no enunciado de Freyre, segundo o qual as mulheres dos sobrados brasileiros do século XVIII eram educadas com "um pouco de literatura, de piano, de canto, de francês e uns salpicos de ciência" (2000, p. 140); c) modelo explicativo da natureza, como em a ciência aristotélica perdeu sua força na modernidade, ou ainda; d) cultura da razão instrumental, como no caso da frase a filosofia de Adorno é uma crítica da ciência. Esse último significado, que diz respeito ao que entendemos por ciência moderna, é o que prevalece na presente reflexão em torno da relação entre ciência e método. A principal característica dessa ciência é a sua processualidade técnica no sentido postulado no livro A condição humana, de Hannah Arendt, para quem a ciência é um processo desencadeado pela livre ação humana, um advento histórico — relativamente recente, como lembra Cassirer (1994) — cujo automatismo "parece muito semelhante ao dos processos naturais" (ARENDT, 1999, p. 43). Com efeito, a processualidade técnica integra de tal forma a relação entre ciência e método que o grito de guerra de Feyerabend (1977), em sua luta por libertar a produção científica das amarras fixas do processo, é Against method [Contra o método]. Isso significa que a "vocação íntima para a ciência" (WEBER, 2005, p. 8) é um chamado para ceder ao imperativo do trabalho especializado que o processo exige na medida em que se capilariza, de modo que, comparativamente, a filosofia vai se definindo como vocação para o abrangente; significa também que o trabalho científico, ao contrário do artístico, jamais é um trabalho acabado, pois a arte lida com as coisas em sua independência em relação ao pragmatismo que permeia o curso processual da ciência, ou seja, "retira o objeto de sua contemplação da torrente do curso" (SCHOPENHAUER, 2003, p. 59). Modernamente, em vista da crescente autonomia do processo científico e do alargamento da sua lógica sobre as demais esferas da vida, tornou-se crucial revisitar as subjetividades fundadoras da ciência moderna, a fim de reavaliar as ações humanas que deram origem à atual configuração da cultura global. Para tanto, servem de referências os nomes de Francis Bacon, René Descartes e Immanuel Kant, por corresponderem, respectivamente, às teorias indutivistas, dedutivistas e críticas que constituem as origens e os fundamentos modernos do método científico.
Referência(s):ADORNO, Theodor Ludwig Wiesengrund. Prismas: crítica cultural e sociedade. Tradução Augustin Wernet; Jorge Mattos Brito de Almeida. São Paulo: Ática, 1998.
ARENDT, Hannah. A condição humana. Tradução Roberto Raposo. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999.
BACON, Francis. Novo Organum ou Verdadeiras Indicações Acerca da Interpretação da Natureza. Tradução José Aluysio Reis de Andrade. [S.l.]: CultVox, ca. 2020.
CASSIRER, Ernst. A Ciência. In: CASSIRER, E. Ensaio sobre o Homem: Introdução a uma filosofia da cultura humana. Tradução Tomás Rosa Bueno. São Paulo: Martins Fontes, 1994. p. 337-359.
CHALMERS, Alan. F. O que é Ciência, afinal?. Tradução Raul Fiker. São Paulo: Brasiliense, 1993.
COSTA, Israel Alexandria. Das teorias modernas do método científico. Arapiraca, AL: Grupo de Pesquisa Gnosiologia, Ética e Informação / CNPq / Ufal - Projeto Web Filosofia, 2021. Disponível em: https://www.gpgeinfo.org/p/cstcncmtd.html. Acesso em: 24 mar. 2021.
DESCARTES, René. Discurso do Método: para bem conduzir a própria razão e procurar a verdade nas ciências. Tradução J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979. p. 25-71.
FEYERABEND, Paul Karl. Contra o método. Tradução Octanny S. da Mota; Leonidas Hegenberg. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977.
FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos: Decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano: Introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil - 2. 12. ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2000.
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Tradução Valério Rohden; Udo Baldur Moosburger. 3. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987.
SCHOPENHAUER, Arthur. Oposição entre Ciência e Arte. In: SCHOPENHAUER, A. Metafísica do Belo. Tradução Jair Barboza. São Paulo: UNESP, 2003. p. 57-59.
WEBER, Max. A ciência como vocação. Tradução Artur Morão. Lisboa: Tribuna da História, 2005.