O moderno comprometimento da racionalidade científica com o poder e com a técnica foi marcado pela instauração de uma monocultura da instrumentalidade que determinou o sufocamento de formas culturais não instrumentais. Com efeito, na medida em que a cultura da instrumentalidade se expande vai se tornando cada vez mais difícil para a arte e para a filosofia retirar as coisas da condição de meros instrumentos úteis para a condição de objetos artísticos e axiológicos. O próprio homem, que na racionalidade greco-clássica era arte e valor destacado dos processos circulares da labuta natural, torna-se, na era da tecnologia, um mero recurso colocado no interior do processo científico moderno, em que tudo é instrumento, em que tudo serve para ser útil simplesmente para servir, sem que se saiba qual é o objeto artístico ou valorativo que dá fim à utilidade. Contra o caráter vicioso da instrumentalidade autotélica da ciência moderna, em que as coisas e os seres humanos tornam-se peças de uma engrenagem produtivista, volta-se a crítica filosófica para assinalar o perigo que isso representa à liberdade do sentimento de independência (Rousseau), da individualidade (Nietzsche), da possibilidade (Heidegger), da arte (Benjamim) e da ação (Arendt). Durante o tempo em que as imagens de crueldade reveladas pela atividade desse processo sobre os segmentos sociais mais vulneráveis impressionaram o sistema, houve um recrudescimento da monocultura da racionalidade instrumental, quando os círculos científicos admitiram que tal racionalidade deveria ficar adstrita a uma cultura dentre outras, desde que isso não implicasse a perda do monopólio científico da verdade epistêmica. Dentre os pensadores "pós-modernos" que teorizaram sobre como manter esse monopólio em um contexto multicultural estão Popper, Peirce e Feyerabend, para os quais a falseabilidade, a falibilidade e a anarquia podem, respectivamente, ser revestidas com uma roupagem de lógica de pesquisa científica, permitindo que a racionalidade instrumental da ciência persista como cultura, embora não monopólica.
Referência(s):ARENDT, Hannah. A condição humana. Tradução Roberto Raposo. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999.
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COSTA, Israel Alexandria. Da ciência como cultura da racionalidade instrumental. Arapiraca, AL: Grupo de Pesquisa Gnosiologia, Ética e Informação / CNPq / Ufal - Projeto Web Filosofia, 2021. Disponível em: https://www.gpgeinfo.org/p/cstcncinstrmntldd.html. Acesso em: 18 abr. 2021.
FEYERABEND, Paul Karl. Contra o método. Tradução Octanny S. da Mota; Leonidas Hegenberg. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977.
HEIDEGGER, Martin. A questão da Técnica. In: HEIDEGGER, M. Ensaios e conferências. Tradução Emmanuel Carneiro Leão. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001. p. 11-38.
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