Segundo Agostinho de Hipona (354-430), "a libido surgiu depois do pecado" (2008, p. 161), ou seja, o corpo humano originário se unia carnalmente a outro mediante um ato de vontade benigna, una e forte. Isso significa, entre outras coisas, que a ereção peniana do primitivo Adão não resultava do desejo descontrolado da excitação sexual, mas de uma livre deliberação, como um dedo que levantamos ou abaixamos quando queremos. O homem primitivo, então, deveria ter pleno controle corporal: conseguiria fazer tremer a parte da pele em que pousava um mosquito, como fazem os cavalos; emitir sons harmoniosos pelo ânus; controlar a respiração, a digestão, a micção e/ou outras funções corporais que, atualmente, julgamos involuntárias. Segundo o autor, foi o advento do pecado que, dividindo a vontade em boa e má, enfraqueceu a vontade primeira de modo a que a vontade herdeira da benignidade, a boa vontade, só manteve o controle de uma parte do corpo, ficando a outra a cargo da má vontade, ou seja, a cargo do descontrole a que se deve a existência da libido em suas versões sciendi [desejo de conhecimento], sentiendi [desejo sensual] e dominendi desejo de dominar. Note-se que essa antropologia difere da de Platão, em que a divisão fundamental se dá entre o mundo intelectivo enquanto pátria da alma e o mundo sensível enquanto pátria do corpo. Em Agostinho, o abismo entre dois mundos ocorre no interior do próprio corpo, que vive como um torturado da Opríchnina [a organização do Ivan, o Terrível, associada ao hábito de amarrar pessoas a cavalos que corriam em sentidos opostos], pois, com efeito, o corpo agostiniano encontra-se como que atado a dois pesos [amores] que atuam como forças de tração opostas: um peso, o amor-de-si ou cupiditas, puxa em direção à Cidade dos homens; o outro, o amor de Deus ou charitas, à Cidade de Deus. No século XX, Foucault recuperará esse aspecto da antropologia agostiniana em sua pesquisa acerca dos discursos de controle da sexualidade e das técnicas disciplinares de fabricação do corpo dócil.
Referência(s):AGOSTINHO. A Cidade de Deus: contra os pagãos. Tradução Oscar Paes Leme. 11. ed. Petrópolis: Vozes; São Paulo: Federação Agostiniana Brasileira, 2009. 2 v., v. 1.
AGOSTINHO. A Cidade de Deus: contra os pagãos. Tradução Oscar Paes Leme. 8. ed. Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2008. 2 v., v. 2.
AGOSTINHO. Confissões. Tradução J. Oliveira Santos; A. Ambrósio de Pina. 17. ed. Petrópolis: Vozes, 2001.
AGOSTINHO Sobre a música. Tradução Felipe Lesage. Campinas, SP: Ecclesiae, 2019.
COSTA, Israel Alexandria. O corpo agostiniano. Arapiraca, AL: Grupo de Pesquisa Gnosiologia, Ética e Informação / CNPq / Ufal - Projeto Web Filosofia, 2021. Disponível em: https://www.gpgeinfo.org/p/agstnhcrp.html. Acesso em: 13 abr. 2022.
FOUCAULT, Michel. Ética, Sexualidade, Política. Tradução Elisa Monteiro; Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004.
Atividade(s):
1)
405/pl/agstnh_crp_lbd